Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar um relato sobre a contribuição da Igreja Católica na Idade Média para a origem e formação das universidades tal como as temos hoje. Este trabalho será baseado no quarto capítulo do Livro “Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental” (2008) de Thomas E. W. J. intitulado: A Igreja e a Universidade. Será demonstrado que a visão de que a Idade Média foi um período de “trevas” e paralisação cultural e intelectual é errônea, pois dentre várias contribuições que esse período realizou uma delas foi a criação das universidades e do método de estudo e pesquisa que hoje vigora em nossas instituições, o que comprova o valor que teve e tem a Igreja Católica desde os seus primórdios.
Palavras chave: Igreja, Universidade, Idade Média, Escolástica.
Em nossos tempos, muito se fala e escreve sobre a Idade Média como sendo um período de “trevas”, de ignorância, de repressão intelectual, e essas afirmações, na maioria das vezes, saem de dentro dos próprios colégios. Mas ignorância é atestar tal afirmação como sendo verdadeira, sem ter conhecimento real da importância que este período teve e da contribuição que o mesmo prestou. Uma dessas importantes contribuições foi o sistema universitário.
Até a Idade Média não se tinha nada parecido com a Universidade, nem na Grécia, muito menos em Roma. O estilo universitário, tal como é baseado o nosso atual, foi uma fundação da Igreja, por que como afirma o historiador Lowrie Daly, a Igreja era “a única instituição na Europa que manifestava um interesse consistente pela preservação e cultivo do saber” (LOWRIE apud WOODS; 2008, p. 46). As datas que as primeiras Universidades surgiram em Paris e Bolonha, Oxford e Cambridge, não são precisas, mas a certeza é que começaram a ganhar forma na segunda metade do século XII.
Algumas são as características que se pode reconhecer uma escola medieval como Universidade:
Uma universidade possuía um núcleo de textos obrigatórios, com base nos quais os professores faziam as suas prelações e, ao mesmo tempo, expunham idéias próprias. Caracterizava-se também por estabelecer currículos acadêmicos bem definidos, que duravam um número de anos mais ou menos fixo, assim como por conferir diplomas. A concessão de título de “mestre” permitia a quem o recebesse o acesso ao grêmio dos docentes [...]. Embora muitas vezes as universidades tivessem de batalhar junto das autoridades externas pela sua autonomia, geralmente conseguiam-na, assim como o seu reconhecimento legal como corporações (WOODS, 2008, p. 47).
No tempo da Reforma havia oitenta e uma universidades. Trinta e três destas tinham estatuto pontifício, quinze estatuto real ou imperial, vinte tinham os dois, e apenas treze não tinham nenhuma credencial. Isso reflete o papel que também o Papado desempenhava naquela época em relação à educação. Somente concedia diplomas oficiais para todo o território da Cristandade com a aprovação do papa, do rei ou do imperador, aqueles diplomas com aprovação de monarcas nacionais simplesmente valiam no reino que eram emitidos.
Mas não só para isso era valiosa a participação dos papas. Nesta época eram comuns os conflitos entre as universidades e o povo ou o governo local. Por um lado a cidade se nutria com o dinheiro que os estudantes traziam e gastavam ali, mas por outro lado esses mesmo estudantes se tornavam irresponsáveis e indisciplinados, o que trazia desgosto e, consequentemente, alguns abusos do povo local em relação aos estudantes. Por esse motivo a Igreja concedeu a esses universitários uma proteção especial, o chamado benefício do clero.
Os clérigos gozavam na Europa medieval de um estatuto especial: maltratá-los era um crime extraordinariamente grave; tinham o direito de que as suas causas fossem julgadas por um tribunal eclesiástico, e não pelo civil. Os estudantes universitários, como atuais ou potenciais candidatos ao estado clerical, passaram a também gozar desses privilégios. Os governantes civis também lhes estenderam muitas vezes uma proteção similar [...] (WOODS, 2008, p. 49).
E não somente nessa ocasião os papas auxiliaram, pois muitos são os registros de interferências papais para um progresso significativo das universidades. Honório III se colocou ao lado de professores que protestavam em favor de seus direitos de liberdade, Inocêncio III interveio quando o chanceler de Paris insistiu que jurassem lealdade à sua pessoa, Gregório IX lançou a bula Parens scientiarum em favor dos mestres de Paris quando as autoridades diocesanas interferiram na autonomia institucional das universidades. Nessa bula o papa concedeu à Universidade de Paris o direito à autonomia de governo, assim ela poderia elaborar suas próprias regras a respeito dos cursos e pesquisas. Também neste documento o papa procurou zelar pela justiça e pela concórdia no ambiente das universidades, concedendo o direito à greve dos estudantes quando estes fossem tratados de modo abusivo. Assim, era comum que as universidades se queixassem ao papa as suas preocupações.
No começo, as aulas eram ministradas nas catedrais ou em salas privadas, pois ainda se carecia de um ambiente próprio, não havia bibliotecas e os livros eram raros, na maioria das vezes aqueles que existiam eram alugados. A maioria dos estudantes era de famílias com poucas posses, muitos se matriculavam com o objetivo de se prepararem para uma profissão, por esse motivo o curso mais freqüentado era o de Direito. Também alguns frades estudavam para ampliar seus conhecimentos ou contavam com a ajuda de um superior eclesiástico. Mas o que se estudava nessas instituições?
Começava-se pelas sete artes liberais, para os principiantes, e prosseguia-se com o direito civil e canônico, a filosofia natural, a medicina e a teologia. Quando as universidades ganharam forma no século XII, foram as felizes beneficiárias dos frutos daquilo que alguns historiadores denominaram “a Renascença do século XII”. Os intensos esforços de tradução permitiram recuperar muitas das obras do mundo antigo – sobre a geometria euclidiana, a lógica, a metafísica, a filosofia natural e a ética aristotélica -, bem como as obras de medicina de Galeno. Também os estudos jurídicos começaram a florescer, particularmente em Bolonha, quando foi descoberto o Digesto, coleção das decisões dos jurisconsultos romanos mais célebre, transformadas em lei e integradas no Corpus júris civilis pelo imperados Justiniano no século VI, e que está na base de todos os códigos civis modernos (WOODS, 2008, p. 51).
Também a vida acadêmica era muito parecida com a que temos em nossas universidades hoje. A distinção de graduação e pós-graduação e o reconhecimento de uma universidade por alto nível em determinada área são exemplos que também naquele tempo se tinha. O método utilizado por Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica era de grande prestígio. Os alunos deviam defender aspectos contrários de determinada questão que o mestre propunha, quando acabava a discussão, o professor tinha o dever de “definir” ou resolver o problema. Assim, para a obtenção do diploma, o aluno deveria resolver uma questão perante os examinadores, depois de provar que estava apto a tal teste. Após discorrer positivamente a questão o aluno recebia o diploma e poderia sair em busca de um trabalho. Esse processo até receber o diploma normalmente durava cerca de quatro a cinco anos.
Os estudos desta época não eram dirigidos somente à teologia, mas sim para vários campos da filosofia natural, como também se pregava a conciliação entre fé e razão:
Dessarte, surgiu algo novo, no medievo, isto é, a demonstração de que filosofia e teologia, fé e razão, longe de serem antagônicas, são conciliáveis. Não admira, pois, terem sido os studia da Idade Média lugares de amplo e profundo diálogo entre cultura e Revelação, turbado, por vezes, com tensões, como a que se verificou no entrechoque da via antiqua com a via moderna (ULLMANN, 2000, p. 437).
Muitos teólogos escreveram sobre física e a própria lógica era de extrema importância nos estudos, demonstrando o compromisso que se tinha com o pensamento racional. Assim, se aquelas afirmações de que tudo era guiado pelos argumentos de autoridade fosse verdade, não teria sentido tanto rigor com a lógica formal nas disciplinas universitárias. E esse tempo que era grande o empenho com que se ministrava a Lógica formal, revelando uma civilização que almejava a compreensão e a persuasão, foi conhecida como Escolástica.
Geralmente, a Escolástica estava ligada ao uso da razão como ferramenta indispensável para os estudos teológicos e filosóficos e para a dialética – confronto de posições opostas, seguido da solução da questão em debate pelo recurso á razão e á autoridade -, e como método de tratar assuntos de interesse intelectual. Com o amadurecimento dessa tradição, tornou-se comum que os tratados escolásticos seguissem uma pauta fixa: enunciado de uma questão, exposição dos argumentos de ambos os lados, manifestação do ponto de vista do autor e resposta às objeções (WOODS, 2008, p. 55).
O primeiro dos escolásticos talvez seja Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109), mesmo que não ocupou nenhum cargo de docência, mas soube compartilhar com eles o uso da razão para analisar questões de Filosofia e de Teologia, como por exemplo, sua obra Cur Deus homo que tratava racionalmente “o porquê” Deus se fez homem. Mas Santo Anselmo é bem mais conhecido nos círculos filosóficos por sua prova racional da existência de Deus:
Para Anselmo, a existência de Deus era uma conseqüência lógica da própria definição de Deus. Tal como um bom conhecimento e profunda compreensão da ideia de “nove” implica que a sua raiz quadrada é “três”, assim também a profunda compreensão da ideia de Deus implica que esse ser deve existir necessariamente (WOODS, 2008, p. 55).
Mesmo que muitos não se convenceram totalmente do argumento de Anselmo, mas a grande maioria dos filósofos levou em conta seu pensamento. O que demonstra o grande compromisso que a idade Escolástica tinha com a razão, compromisso esse que pensadores posteriores assumiriam também.
Outro grande representante dessa época foi Pedro Abelardo (1079-1142) que foi professor por dez anos na escola da catedral de Paris. Este elaborou uma lista de aparentes contradições, citando passagens dos primeiros Padres da Igreja e da própria Bíblia. Qualquer que fosse a solução de cada caso, cabia à razão humana resolver tais dificuldades intelectuais.
Disse certa vez que não ‘desejava ser um filósofo, se isso significasse rebelar-se contra o Apóstolo Paulo, nem um Aristóteles, se isso significasse separar-se de Cristo’. Os hereges – disse também – usaram argumentos da razão para atacar a fé e, por isso mesmo, era muito conveniente e apropriado que os fiéis da Igreja fizessem uso da razão para defender a fé (WOODS, 2008, p. 58).
Também o pensamento de Abelardo influenciou pensadores posteriores como, por exemplo, Pedro Lombardo (1100-1160) que, provavelmente foi seu aluno. Lombardo escreveu as Sentenças, obra que se tornou texto fundamental para o estudo de Teologia dos cinco séculos seguintes. Neste escrito ele abordou assuntos diversos da fé católica combinando a confiança na autoridade com a disposição de empregar a razão na exposição dos temas teológicos.
O maior dos escolásticos e, na verdade, um dos maiores pensadores de todos os tempos foi Santo Tomás de Aquino (1225-1274). Escreveu uma grandiosa obra chamada Summa theologiae, obra esta que respondeu milhares de interrogações sobre a teologia e a filosofia. Foram vários os temas abordados, mas a questão que mais contribuiu, tanto em Santo Tomás como em Santo Anselmo, foi a existência de Deus, por ser o exemplo clássico do uso da razão em favor da fé. Santo Tomás desenvolveu na Suma cinco vias para se chegar a provar a existência de Deus. Ele começa dissertando sobre causa e efeito, pois afirma que todo efeito requer uma causa e que nada do que existe no mundo físico é causa de sua própria existência, por isso esse argumento foi chamado de princípio da razão suficiente. “Quando vemos uma mesa, por exemplo, sabemos perfeitamente que ela não apareceu espontaneamente. Deve a sua existência a algo mais: a um construtor e a uma matéria-prima anteriormente existente” (WOODS, 2008, p. 60).
Santo Tomás afirma que deve haver uma Causa sem causa que dê início à sequência de causas:
Essa primeira causa – diz São Tomás – é Deus. Deus é um ser que existe por si mesmo, cuja existência é parte da sua própria essência. Nenhum ser humano deve existir necessariamente; houve um tempo antes de cada em de nós ter vindo à existência, e o mundo continuará a existir depois de cada um de nós ter morrido. A existência não é parte da essência de nenhum ser humano. Mas com Deus é diferente: Ele não pode não existir. E não depende de nada anterior a si mesmo para explicar a sua existência (WOODS, 2008, p. 60).
Foi com estes exemplos de rigor filosófico que marcou a vida intelectual das primeiras universidades. E justamente por isso que as universidades eram tidas como verdadeiros tesouros da civilização cristã. Tanto isso é verdade que o papa Inocêncio IV (1243-1254) afirmou que as universidades eram como “rios de ciência cuja água fertiliza o solo da Igreja universal’, e o papa Alexandre IV (1254-1261) chamou-as ‘lâmpadas que iluminam a casa de Deus’” (WOODS, 2008, p. 61). E foi precisamente o apoio dos papas que as universidades cresceram e tiveram êxito.
Contrariando as afirmações de que a Idade Média nada contribuiu para a civilização, o exposto neste artigo retrata a tamanha importância da liberdade de pesquisas universitárias, liberdade esta que permitia os alunos debater e discutir proposições apoiados na certeza da utilidade da razão humana.
O que foi que tornou possível à civilização ocidental desenvolver a ciência e as ciências sociais de um modo que nenhuma outra civilização havia conseguido até então? Estou convencido de que a resposta está no penetrante e profundamente arraigado espírito de pesquisa que teve início na Idade Média como consequência natural da ênfase posta na razão. Com exceção das verdades reveladas, a razão era entronizada nas universidades medievais como árbitro decisivo para a maior parte dos debates e controvérsias intelectuais. Os estudantes, imersos em um ambiente universitário, consideravam muito natural empregar a razão para pesquisar as áreas do conhecimento que não haviam sido exploradas anteriormente, assim como discutir possibilidades que antes não haviam sido consideradas seriamente (GRANT apud WOODS, 2008, p. 62).
A criação da Universidade, com esta também o compromisso com a razão e com a argumentação racional e o abrangente espírito de pesquisa foram contribuições especiais da Idade Média ao mundo moderno, mesmo que isso não seja reconhecido por este. “Foi um dom da civilização cujo centro era a Igreja Católica” (WOODS, 2008, p. 62).
Além de todo o conteúdo já mencionado não podemos nos esquecer de outras contribuições também importantes daquela época, que facilitaram nosso aprendizado hoje. Uma dessas contribuições foi fruto dos copistas, pois naquele tempo não havia tipografia e todos os livros que precisassem ser estudados eram copiados para multiplicar o número e facilitar o estudo. Outro fator importante era o intercâmbio cultural, facilitado pelo latim, língua única para os meios de comunicação de idéias naquele período. Os grandes mestres eram disputados por diversas universidades: “A universitas medieval tinha as portas abertas a todas as culturas: grega, romana, árabe e judaica, tornando-se depositária e reelaboradora do pensamento por elas legado” (ULLMANN, 2000, p. 429).
Também a questão social foi fortemente afetada com o surgimento das universidades, pois como foi a Igreja Católica a responsável por esse surgimento, ela também usou desse instrumento para praticar os preceitos evangélicos:
Eliminou-se a diferença entre ricos e pobres, mediante bolsas de estudo e prebendas. A isenção de taxas (privilegium paupertatis) foi uma medida consciente das universidades para com os poucos afortunados, a fim de promover, sem discriminação, as capacidades intelectuais e o desejo de saber, quer se tratasse de clérigos ou de seculares. Explica-se assim, o acesso de leigos às cátedras de teologia (ULLMANN, 2000, p. 433).
Após tais constatações verifica-se que a “Idade das trevas”, como é chamada a Idade Média por alguns, soube iluminar a todos com o desejo e a ânsia pelo saber em busca da Verdade Última. Conseguiu deixar um importantíssimo legado para toda a humanidade e sempre se poderá usufruir deste bem, pois, como afirmou Salomão “a sabedoria não se deixa acorrentar” (Pr 9, 1). A universidade subsiste enquanto houver homens consagrados ao ensino e à pesquisa, visando sempre a verdade. Esta é a tradição que herdamos da Igreja Católica na Idade Medieval.
REFERÊNCIAS
WOODS. T. E. J. Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental. Trad. Élcio Carillo. São Paulo: Quadrante. 2008. 222 p.
ULLMANN, Reinholdo Aloysio. A Universidade Medieval. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS. 2000. 486 p.
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